O CASO DORA Ao receber o convite para, junto aos colegas Meneghini e Pechansky, tecer alguns comentários sobre o Caso Dora, fui, como manda o bom senso, relê-lo. De início Freud chama a atenção para o que ainda hoje deve ser valorizado, mas parece que é esquecido: o substrato orgânico, o biológico subjacente em todo o processo mental. Não podemos esquecer que a separação em somático e psíquico é um artifício usado com objeto de estudo, já que se torna praticamente impossível abarcar a totalidade dos problemas mentais. Uns se dedicam à abordagem pelo ângulo biológico, genético, químico e outros pelo psíquico e devemos nos utilizar dos progressos tanto de um como de outro para o bem dos pacientes. No entretanto o que vemos inúmeras vezes é que os dois lados ficam a supervalorizar sua abordagem e a depreciar a dos - a estas alturas "inimigos"- transformando o que deveria ser uma somação em uma "querela de arraial"... Sou do tempo em que os tratamentos psiquiátricos estavam evoluindo da balneoterapia e da aplicação de correntes farádicas e tranqüilizantes para a convulso-terapia cardiasólica ou elétrica, dos comas insulínicos e das borrascas vasculares pela acetil-colina. A psicoterapia lentamente surgia entre nós com Dionélio Machado, Celestino Prunes, Décio Soares de Sousa e posteriormente com Mário Martins, Cyro Martins e José Jayme Lemmertz. Agora psicoterapia psicanalítica e psicanálise. O que vem se notando é que a evolução se dá por surtos e em báscula, poderíamos dizer. À uma época de progressos maiores nas pesquisas biológicas sucede um progresso no terreno do psíquico. Isto quando somado nos leva para diante na compreensão e no tratamento psiquiátrico. Mas como somos humanos não nos furtamos de utilizar para uma "guerrinha religiosa" do tipo: "o meu deus é o único e verdadeiro e o teu não passa de um falso deus e deve ser destruído". Que seja bem-vindo o progresso no terreno biológico e no psicológico já que um não pode prescindir do outro. Ao escrever estas linhas me veio à mente um episódio ocorrido numa conferência proferida por renomado psicanalista - já lá vão mais de quarenta anos - na Faculdade de Medicina, sobre os fatores psicológicos na gênese da tuberculose. Ao finalizar sua brilhante exposição o professor de Tisiologia - na época a Pneumologia praticamente se restringia ao tratamento da tuberculose - fez a seguinte observação : ..."mas doutor, e o bacilo de Koch?" Ao que o conferencista respondeu: ..."mas a estas alturas o Sr. vem me falar em bacilo de Koch !... " (pano rápido, como diria Millôr Fernandes) . Se o conferencista esclarecesse que, de fato, sem o bacilo de Koch não há tuberculose e que ele estava a falar em um dos fatores coadjuvantes no desencadeamento da moléstia, certamente estaria contribuindo para que suas idéias fossem aceitas e valorizadas. Mas como a coisa foi feita, o professor de Tisiologia teria todo o direito de indo para o outro extremo, desprezar os aportes do conferencista. Outro ponto que julgo de máxima importância a ser relembrado, não só para os principiantes como para todos nós, mesmos antigos nesta atividade, é o que Freud, já nas primeiras linhas do "Caso Dora" chama a atenção dos leitores para a obrigação do pesquisador para com a ciência e mesmo para com os colegas em comunicar seus achados. Por outro lado alerta para que o material do paciente seja exposto de tal forma que a sua identidade seja protegida e o paciente não corra o risco de ser identificado. Cito um período do autor:" Não ignoro que há muitos médicos --pelo menos em Viena-- que esperam com repugnante curiosidade a publicação de meus relatos clínicos, para lê-los, não como uma contribuição a psicopatologia das neuroses, senão como uma novela, destinada a seu particular entretenimento. Desde já quero assegurar a esta classe de leitores que todos os relatos que venha a publicar aparecerão protegidos contra sua maliciosa curiosidade por análogas garantias de segredo, ainda que tal propósito venha a limitar extraordinariamente minha livre exposição do material acumulado em muitos anos de investigação." Aí está, a meu ver, um ponto nodal da técnica psicanalítica que, por mais que seja grifado não tem sido levado em conta, como deveria, justificando minha insistência em cita-lo. Os "muitos médicos Vienenses", referidos por Freud não estão desacompanhados. Se não protegermos nossos pacientes seja ao apresentarmos casos em trabalhos, como grifava Freud, seja em supervisões coletivas, ou até mesmo através de comentários com nossos cônjuges, colegas, ou mesmo em rodas sociais, estamos praticando uma agressão contra eles e desacreditando e agredindo nossa atividade profissional. Daí nunca ser demais repetir e insistir sobre o que Freud já grifava em 1905. E já lá vai quase um século ! Nossos impulsos escoptofílicos devidamente sublimados nos encaminham à "investigação da vida alheia" com o objetivo de levar o paciente a se conhecer melhor. Este é o caminho da cura. Mas se a sublimação não é conseguida, e o terapeuta leva para fora do consultório, o que lá se passa , está transformando o que poderia ser um tratamento em uma "perversa fofoca". Somente em uma situação se justifica a infração desta regra básica: é quando o caso está em supervisão. Mas aí, o supervisor deverá se comportar como se fora ele próprio o terapeuta: sigilo absoluto com respeito ao caso em supervisão. Sérgio Paulo Annes |